terça-feira, 9 de agosto de 2011

GUSTAVO SOUZA...ESSA É EM SUA HOMENAGEM!!!


Leituras Cruzadas: Ri melhor quem ri

XICO SÁ
especial para a Folha de S.Paulo

Mesmo com aquela carranca dos diabos, com a qual defendia os mais maçantes conceitos de ética e política, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) deve ter relaxado, músculos faciais em animada cadência, quando baixou-lhe o estalo, macio como um cafuné, dando conta da exclusividade humana no direito ao riso. O homem, noves fora o aparente escárnio das hienas —parecem gozar dos documentaristas que levam a sério o mundo animal—, é a única criatura que ri e sabe que a morte é uma certeza absoluta. À guisa de patifaria, poderíamos lembrar também aquele cachorro que "sorriu latindo", para recepcionar seu dono, em conhecida canção de Roberto Carlos.

Associated Press
Cena de episódio da série de TV "Os Três Patetas"

O melhor é que a arte do cãozinho do "rei" encontra guarida no pensamento de Arthur Schopenhauer, que via na agitação de uma cauda um rompante de alegria mais natural que o esgar de um sorriso. O filósofo achava que "somos alguma coisa que não deveria existir". Tudo bem. Talvez já soubesse àquela altura que, quanto mais conhecemos o homem, mais nos tornamos amigo do cão.

Defendia o riso como manifestação pessimista diante da dramaturgia absurda que é a vida. Não como remate de males, como querem os mais objetivos neoliberais apreciadores da comédia atual. Não apenas como sátira e palmatória da humanidade, como desejavam sobretudo os escribas moralistas do século 19. No Brasil, um dos mais emblemáticos dessa laia foi o padre beneditino Lopes Gama, que editou, a partir dos anos 30, "O Carapuceiro", cujo dístico era "um periódico sempre moral e, per accidens, político".

Agora falando sério. Três bons livros na praça refletem sobre essa rotina e aventura de exibir caninos e molares em gargalhadas sem cerimônia, operar galhofas ou simplesmente fazer pilhéria da coitada da existência. Ei-los: "História do Riso e do Escárnio", do francês Georges Minois (Editora da Unesp); "O Riso - Ensaio sobre a Significação da Comicidade", de Henri Bergson (Martins Fontes), e "Hobbes e a Teoria Clássica do Riso", do inglês Quentin Skinner (Editora Unisinos).

Para todos, o princípio é o aristotélico. Fundamental, mas também risível, por outras atividades. Nas suas confissões, Thomas Hobbes (1588-1679) assentava que Aristóteles tinha sido o pior professor que já existiu, o pior político e o pior estudioso de ética. Salvava-se pela retórica e por seus estudos dos animais, aí incluído a exclusiva capacidade do riso humano.

A galhofa dos mais jovens, que se comportam em público como bandos de periquitos em algazarra permanente, é mote grego do segundo livro da "Retórica". Os moços, ridentes moços, observava Aristóteles, no entendimento encantado de Hobbes, são amigos da alegria e adoram zombar dos outros.

Nos insultos graciosos dos jovens, hoje conhecidos pela galera como "tirar onda", Hobbes realça o conceito do riso como degradação do outro, mesmo por pura diversão.

"A sugestão básica de Aristóteles é, portanto, que a alegria induzida por zombaria é sempre uma expressão de desprezo, uma sugestão que já estava presente em sua observação anterior de que, entre as origens do prazer, estão "as ações, os ditos e as pessoas ridículas", anota Skinner.

Dono de riso mais contundente foi Demócrito, também avaliado por Hobbes. Velho e decrépito, recebeu a visita de um admirador. Este desabou em um choro histérico, "em voz alta, como uma mulher chorando a morte de um filho".

Diante do vexame do cidadão, que derramava lágrimas com o sabor de piedoso jiló, o sábio Demócrito deu a maior gargalhada. "Estou apenas rindo da humanidade, cheia de loucura e vazia de quaisquer boas ações", contaria mais tarde o velho a Hipócrates. Para o festivo gozador, os homens se ocupam de assuntos sem nenhum valor e consomem suas vidas com coisas ridículas.

O riso dos cínicos, na versão do historiador Georges Minois —também autor de vastos levantamentos sobre o suicídio e sobre o Diabo—, é mais positivo, embora com feições mais espalhafatosas, do que o espírito dos céticos niilistas à Demócrito. "Praticando a ironia de forma provocativa, eles perseguem, de fato, uma finalidade moral, aparentando amoralidade", diz.

É a hora e a vez de Diógenes, celebridade do cinismo do século 4º a.C. Lanterna na mão, propagava aos quatro ventos: "Procuro homens, não escória". Sem cerimônias, praticava sexo e se masturbava em praças públicas. Um dia, durante uma refeição, atiraram-lhe um osso, como se fosse um vira-lata. Ele não teve dúvidas, retribuiu com os mesmos valores: urinou sobre os autores da patifaria, como em postes.

"O Riso - Ensaio sobre a Significação da Comicidade", de Henri Bergson, Martins Fontes, 152 págs., R$ 22,50
No seu clássico "O Riso", Henri Bergson (1859-1941) revela que o escracho começa quando termina a comoção. Segundo o estudioso, há estados de alma que nos comovem tão logo os conhecemos, alegrias e tristezas com as quais simpatizamos, paixões e vícios que provocam surpresas dolorosas, terror ou piedade naqueles que o contemplam. Tudo isso é sério e, às vezes, trágico.

"Quando a pessoa do próximo deixa de nos comover, só aí pode começar a comédia. E começa com o que se poderia chamar de enrijecimento para a vida social. É cômico a personagem que segue automaticamente seu caminho sem se preocupar em entrar em contato com os outros", diz. "O riso estará lá para corrigir sua distração e para tirá-la do seu sonho."

Bergson é dono da tese do riso como trote social. O riso embute o sentido de humilhar alguém. Daí o formato mais perto da vida seria a comédia, não o drama. A comédia como linguagem inferior. Estamos sempre mais para Monty Python do que para Shakespeare, embora os ditos sérios reivindiquem as dores do mundo como marketing-engrandecimento de espírito. O poder da biografia sofrida.

Associated Press e Reuters
Participantes do Clube da Risada da Índia; à esq., presos em penitenciária em Bombaim e, à dir., habitantes da cidade de Chandigarh, no norte do país

Na sua história, Georges Minois menospreza Hamlet, Macbeth e Henrique 5º. Elege como o grande personagem do teatro shakespereano sir John Falstaff, que ri, faz rir e de quem se ri. O lema do personagem justifica a superioridade merecida: "Come, bebe e diverte-te, porque amanhã estarás morto".

Falstaff repetiria o riso à Rabelais, exaltado por Minois, com excelência. O personagem só pisa na bola por uma ocasião: acredita em um político, o príncipe Henrique, que o despreza com nojo ao subir à condição de Henrique 5º.

Depois de tratar do riso na filosofia grega —além de Aristóteles, a ironia socrática é outro partido alto—, da diabolização do riso na alta Idade Média e da gargalhada solta do Renascimento, o historiador francês chega ao século 16 sob o espanto do fim do riso. A grande ofensiva político-religiosa do sério vai até o século 18.

Estouram os protestos contra o Carnaval —ilusão perigosa do demônio—, festas populares e quaisquer manifestações profanas. Os ditos loucos também foram aprisionados, afinal de contas, é deles o riso mais libertário. O clero toma a dianteira nessa campanha conservadora. Baixa-se uma espécie de código de bom-tom, na tentativa de abafar as gargalhadas. Um livro, em especial, sintetiza as proibições. É o "Tratado dos Jogos e Diversões que Podem Ser Permitidos ou que Devem Ser Proibidos aos Cristãos Segundo as Regras da Igreja e o Sentimento dos Pais", de 1686, de autoria de um doutor em teologia chamado Jean-Baptiste Thiers.

Jesus Cristo não ri. Todos ao vale de lágrimas, recomenda a nova etiqueta. A alegria é crime, jamais prova dos nove. Nessa mesma época cartesiana, é decretada também a morte de uma entidade que reinava há séculos: sua excelência, o bobo da corte. O máximo permitido era um palhaço doméstico, como narra Minois. Escribas como Voltaire, autor de uma obra bem-humorada, aplaudiu o desaparecimento oficial da função de bobo. "Éramos um tanto bárbaros, tanto quanto o somos deste lado dos Alpes. Cada príncipe tinha o seu bobo oficial. Reis ignorantes, criados por ignorantes, não podiam conhecer os nobres prazeres do espírito: eles degradavam a natureza humana a ponto de pegar pessoas para lhes dizer patetices", vocifera.

"História do Riso e do Escárnio", de Georges Minois, Editora da Unesp, 654 págs., R$ 68
Minois relata na sua "História do Riso e do Escárnio" caso curioso sobre os índios brasileiros no século 16. Narra o assombro do calvinista Jean de Léry, que, em 1556, chegou ao Rio para uma temporada em uma pequena comunidade francesa instalada na cidade, conhecida como França Antártica.

De volta à França, em 1578, o estrangeiro escreve "História de uma Viagem Feita ao Brasil", no qual revela-se abismado com o riso permanente dos índios. "É um povo que foge da melancolia", diz. "Eles detestam os taciturnos, mesquinhos e melancólicos".

Os índios riam da moda dos europeus, achavam ridículas as suas vestes, anotou Léry. Fenômeno que se daria justamente ao contrário a partir do século 19, quando os brasileiros passaram a copiar e a se ajoelhar diante de qualquer "tendência" européia. Os índios riam de tudo, inclusive dos seus próprios atos de canibalismo. O próprio Léry chegou a achar, certo dia, que faria parte do cardápio dos selvagens. Não passou de um susto. Gargalhada geral diante do medo do branquelo europeu.

"O que significa esse riso perpétuo, misterioso, ambivalente? Ele exprime a inocência original, a alegria dionisíaca de liberdade total? Não traduz, antes, a perversão satânica de uma humanidade que não foi resgatada do pecado original?", indaga Minois.

Se os índios riam de tudo, os dialéticos, como Hegel, não eram de mostrar os dentes para ninguém. São dele, já no século 19, insistentes manifestações a favor da seriedade. O riso e o escárnio seriam, no seu entendimento, contra a construção intelectual. "O irônico, como individualidade genial, consiste no auto-aniquilamento de tudo que é soberano, grande e nobre", discursa, sentindo-se o senhor de todas as explicações, dono de um sistema filosófico para lá de carrancudo e austero.

Nietzsche chega oportunamente com o seu decreto de falência de Deus, riso escancarado e permitido. Assim gargalhou Zaratustra, contra os ídolos: "Eu lhes ordenei que rissem de seus grandes mestres da virtude, de seus santos, de seus poetas e de seus salvadores do mundo. Ordenei-lhes que rissem de seus sábios austeros. (...) A pequenez do que eles têm de melhor, a pequenez do que eles têm de pior, era disso que eu ria. Meu sábio desejo brotava de mim com gritos e risos".

Com o crepúsculo dos ídolos nascia o popular "quem ri por último ri melhor". Hegel não quer rir, Schopenhauer não pode impedir-se de rir, Nietzsche quer rir, mas nenhum dos três, conclui Georges Minois, é alegre. O historiador ressalta, nesse momento, o apuro técnico de Henri Bergson, o autor de "O Riso", que procura sacudir o homem para decifrar o mecanismo da gargalhada e seus derivativos.

No seu livro, Bergson chama a atenção para a insensibilidade que, ordinariamente, acompanha o riso. A comicidade, no seu entendimento, só poderá produzir comoção se cair sobre uma superfície de alma serena e tranquila. "A indiferença é seu meio natural. O riso não tem maior inimigo que a emoção. Não quero dizer com isso que não podemos rir de uma pessoa que nos inspire piedade, por exemplo, ou mesmo afeição: é que, por alguns instantes, será preciso esquecer essa afeição, calar essa piedade", pensa.

"Hobbes e a Teoria Clássica do Riso", de Quentin Skinner, Editora Unisinos, 88 págs., R$ 11
Thomas Hobbes, visto por Quentin Skinner, prega contra essa indiferença, em um rascunho tímido do que viria a ser o politicamente correto dos dias que correm. Surtos desse PC, aliás, atravessam toda a história do riso. Hobbes defende a cordialidade máxima. Nada de desprezo, riso ou escárnio. Diante do ridículo dos que riem para rebaixar alguém, ele recomendava um certo ego inflado —valorizar-se, mas não com vanglória— para fazer o bom combate e afastá-los.

Bonzinho demais, diria o poeta Charles Baudelaire, ainda no século 19, com o seu riso diabólico a desprezar a aura dos artistas e de Deus. Rir dos pobres também era um pendor desse maldito.

No século 20, dos dadaístas e do humor a serviço de tudo, o cômico também se tornou um imperativo social. O riso perdeu sua força, como atesta Gilles Lipovetski, no seu "A Era do Vazio", de 1983. "Um novo estilo descontraído e inofensivo, sem negação nem mensagem, apareceu. Ele caracteriza o humor da moda, do texto jornalístico, dos jogos radiofônicos e televisivos, do bar..." Não há mais festa do espírito no riso, a esculhambação dionisíaca deu lugar ao "cool".

Minois sai da Idade Média e chega às festas tecno. Acha que há um divórcio entre as folias modernas e o riso —o sujeito agora se perde totalmente no grupo—, ao contrário de antigamente, quando a farra era associada ao riso em razão do seu caráter excepcional, que permitia estabelecer um deslocamento da norma. Será que o historiador levou em conta o sorriso do gato de Alice reinstaurado com as drogas sintéticas? Ele acha que apenas o Carnaval —cita o da Espanha— mantém o espírito coletivo. As raves seriam apenas uma busca fetichista do sagrado. "Não é irônico ver multidões laicas viverem a festa tecno como uma verdadeira missa?", é a pergunta que nos deixa.

Xico Sá, 40, é jornalista, autor do livro de crônicas de costumes "Modos de Macho & Modinhas de Fêmea - A Educação Sentimental do Homem" (Record, 2003) e editor do site "O Carapuceiro" (www.carapuceiro.com.br), de humor e sátiras, e acredita no riso como o elixir da longa vida.
FONTE:http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u460.shtml

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